Um olhar retrospectivo

Noite Estrelada sobre o Ródano . Vincent Van Gogh

Em muitos trechos de sua obra, Rudolf Steiner ressalta a importância de um exercício específico para a higienização e fortalecimento da alma, denominado Retrospectiva. Ele é abordado sob vários ângulos e em diversos níveis de profundidade.

Idealmente é uma prática diária, na qual repassamos mentalmente todos os acontecimentos do dia na ordem inversa do tempo em que ocorreram.

Rememorar do fim ao início uma peça de teatro, um conto que lemos, também é salutar para todo o organismo, contribuindo para a transformação da nossa consciência comum em uma consciência mais desperta e refinada.

Ao percorrer esse caminho – que nos conduz à direção contrária ao rumo ordinário dos eventos –, tonificamos nossa vitalidade, fortalecemos nossa capacidade de discernimento e libertamos nosso pensar da sequência linear do tempo.

Podemos estender esta reflexão para o momento atual em que vivemos, e exercitar uma atitude interna que retrocede ao momento da instalação do medo e da insegurança que a pandemia trouxe à humanidade.

Relembrar de como o nosso mundo é um lugar de encontros significativos, de paisagens deslumbrantes, de criações artísticas inumeráveis, de sonhos, esperanças e realizações, têm o poder de restabelecer nossa confiança na renovação da vida.

Porque simplesmente ela se renova desde sempre.

Talvez, ao chegarmos ao fim de um ano tão desafiador, possamos praticar um olhar retrospectivo sobre cada ato de superação que desenvolvemos frente às dificuldades que se apresentaram.

E com isso, nos darmos conta da enorme força motriz que subjaz em nosso interior, capaz de criar novas e mais fecundas realidades.

É mister acordar para o milagre da existência !

Como diria o poeta Guillaume Apollinaire: “ Já é hora de reacender as estrelas”.

Eliane Utescher

Psicóloga / Terapeuta Biográfica

18/12/2020

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Published in: on 21/12/2020 at 7:30 p12  Deixe um comentário  

O Cuidar e a Liberdade

San Cristoforo . Guirlandaio

“…Não podemos pensar sobre o conceito completo do ser humano, sem chegar ao espírito livre como a mais pura manifestação da natureza humana. Somente somos verdadeiros seres humanos na medida em que somos livres.” Rudolf Steiner

Um dos fatores relevantes no tratamento em psicoterapia de adultos de orientação antroposófica é o tempo de duração propriamente dito. Evita-se a dependência, estimulando-se a autonomia.

Ciente de que a cada individualidade corresponde uma natureza singular, e que cada caso é um e único, o profissional sabe que o acolhimento, nesse âmbito, visa a uma transição. É um “servir”que prepara e almeja devolver o indivíduo a si mesmo e à vida que pulsa na vastidão do mundo, do lado de fora das paredes do seu consultório.

A necessária e íntima ligação que se estabelece paulatinamente entre terapeuta e paciente está baseada nos princípios da liberdade e da evolução, ambos norteadores de toda a terapêutica fundamentada na Antroposofia.

Cuidamos, apoiamos e ajudamos a desenvolver no outro aquilo que ele não está, temporariamente, conseguindo abarcar em determinado momento de sua vida. Ele não está podendo Ser.

Confiamos no vir a Ser.

Através de um olhar que enxerga no outro a sua identidade essencial, o terapeuta inicialmente “empresta”, como imagem, seus sentidos e membros, para conduzi-lo. Mas é apenas para relembra-lo, ao longo do processo, que é ele mesmo, com forças de consciência e vitalidade recuperadas, quem se carregará na vida.                                                      

Para além da dor, do sofrimento, do cansaço e da doença.

Eliane Utescher

Psicóloga / Terapeuta Biográfica

23/10/2020

Published in: on 23/10/2020 at 7:30 p10  Deixe um comentário  

O Limiar de um Novo Tempo

William Turner

Uma grande contribuição contemporânea para a compreensão das emoções pelas quais passamos durante um processo de perda, separação e morte, nos foi trazida pela psiquiatra suíça Elizabeth Kubler Ross.

Com base em sua vasta experiência clínica, ela identificou 5 estágios: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Essas fases nem sempre ocorrem nessa ordem, e todas de uma vez para todo mundo. Porém todos nós experimentamos, de alguma forma, sentimentos de isolamento, revolta e falta de sentido na vida, quando expostos ao sofrimento.

O exercício da clínica em psicoterapia inspirada pela Antroposofia, nos revela que não há desenvolvimento humano sem a vivência periódica de crises, verdadeiras oportunidades para transformar padrões obsoletos em novas perspectivas, valores e formas de viver.

Desde seus primórdios, a história das civilizações e das culturas antigas tem passado por etapas evolutivas que, de forma geral, se constituíram por períodos cíclicos de construção, manutenção e dissolução ao longo do tempo.

Assim observamos como o caos tem sido desde sempre o elemento natural necessário à instauração de uma nova ordem. Ele é doloroso, mas não deixa de ser a premissa de uma ressurreição.

Recentemente sentimos o impacto de uma pandemia mundial, e agora nos encontramos em transição para um novo tempo. O ser humano se vê novamente na iminência de usar de sua liberdade para fazer escolhas.  Vivemos uma crise na nossa imunidade e na nossa humanidade.                                        

É chegado o tempo de seguir em frente.

Em certa medida parte da comunidade humana se deu conta de que seu destino e o da Terra estão entrelaçados.

Somos tempestade e calmaria, desertos e florestas, luz e escuridão.

Que possamos juntos caminhar na direção de um mundo mais inclusivo, generoso, tolerante, compassivo, colaborativo e amoroso.

Eliane Utescher                                                                      

Psicologa / Terapeuta Biográfica

28/08/2020

Published in: on 14/09/2020 at 7:30 p09  Deixe um comentário  

Humanização

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Eventos como os que ocorrem na atualidade, nos colocam muitos desafios e em várias esferas da vida.

Mais particularmente no tocante ao território da nossa alma e estrutura emocional, podemos observar sentimentos e sensações inusitados e desconfortáveis. Manifestam-se como ansiedade, depressão, fobias, e desequilíbrios psicológicos que se espelham no corpo, causando os mais variados sintomas.

A depender do nível de consciência e resiliência, do quanto e do quão profundamente somos atingidos por doença e morte, podemos sair dessa experiência mais fragilizados ou fortalecidos.

Trabalhar com desenvolvimento humano nos ensina que, como diria Guimarães Rosa “…a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta”. Ou ainda nas palavras de Nelson Mandela “descobri que se pode suportar o insuportável, quando se é capaz de manter o espírito, mesmo quando o corpo te põe à prova”.

Ao aceitar e promover no outrem uma relação com a vida e com a natureza humana como ela verdadeiramente é, na sua inteireza, do mais primitivo ao mais evoluído, construímos uma ponte que nos eleva do sentimento de solidão à solitude, do sofrimento à superação, da ilusão do Ego à luminosa realidade do Ser.

Agora chegamos num ponto de virada para uma tomada de consciência que conecte nossa identidade com o essencial, com valores edificantes não só para conosco mesmos, mas para com o próximo, e a Terra.

Estamos testemunhando ações daqueles que se locupletam da pandemia para prejudicar outros, ou em benefício próprio; dos que conseguiram se reinventar e recriar a própria existência de forma digna; e, por fim,  dos que, tocados pela dor alheia, humanizaram-se em solidário altruísmo.

Assim estamos. Assim somos. Assim poderemos nos tornar.

Não desperdicemos esta crise!

Ela é a grande oportunidade evolutiva do nosso tempo.

Eliane Utescher

Psicóloga / Terapeuta Biográfica

03/07/2020

Published in: on 16/07/2020 at 7:30 p07  Deixe um comentário  

Forças de Superação

O Grito

“Façamos da interrupção um caminho novo.

Da queda um passo de dança,

do medo uma estrada,

do sonho uma ponte,

da procura um encontro.”         

                                                                Fernando Sabino

Ao contemplarmos a impactante pintura “O Grito”, de Edvard Munch, podemos observar 3 planos. Assim como na vida, são momentos nos quais podemos nos fixar, ou estarmos de passagem.

No primeiro plano, uma estática figura humana expressa sua face angustiada; no segundo, duas pessoas caminham juntas atravessando uma ponte; no terceiro plano, ao longe, outras pessoas navegam em águas claras. Uma imagem rica em analogias sobre o lugar, o tempo e os desafios que vivemos atualmente na nossa relação com o medo.

Pensando em planos e na direção do olhar, podemos refletir sobre este convite que o assombro nos faz. E talvez, formular perguntas para as quais ainda não tenhamos respostas. Em que plano estamos ancorando nossa consciência sobre nós mesmos?            Sobre os outros seres humanos? Sobre a vida na Terra?

O medo nos remete à paralisação, ao limiar com o desconhecido, que, por sua vez, está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento humano. Ao longo de toda a existência, vivemos entrando e saindo de diferentes ciclos, tendo que abandonar antigas seguranças e nos abrindo para o novo.

Ele é um elemento natural e necessário ao amadurecimento da autoconsciência. Ele nos desperta! Revela-se um guardião que nos impede de adentrar sem preparo no escuro, e, por isso mesmo, um semeador de forças de confiança inerentes à sua própria superação.

Um pensar menos denso e mais sutil, amplo e fecundo, reconhece naquilo que nos amedronta, no corpo e na alma, a manifestação da natureza humana em evolução.

Somos passantes. Da gestação ao nascimento, à infância, à juventude, à maturidade, à velhice.

E, em essência, da inatalidade à eternidade.

Eliane Utescher

Psicóloga / Terapeuta Biográfica

08/05/2020

Published in: on 11/05/2020 at 7:30 p05  Deixe um comentário  

A Meditação

“Quando o ser humano começa a fazer meditações, ele realiza, por seu intermédio, o único ato realmente livre nesta vida humana” Rudolf Steiner

Muitas são as correntes filosóficas que instruem diferentes formas de meditação através de leituras, repetição de sons, momentos de silêncio, movimentos e/ou posturas corporais.

Alguns benefícios já são largamente comprovados pela ciência, como por ex., o aumento da vitalidade física, imunidade, bem estar emocional, incremento da concentração e da capacidade produtiva, redução de stress.

Dentro da abordagem antroposófica, a prática meditativa está intimamente associada ao desenvolvimento de uma jornada individual de autoconhecimento e aprimoramento do caráter, conforme descrevemos no post sobre Caminho Interior.

Uma vez que o ato meditativo amplifica o que subjaz na alma, e ele, por si só, não garante que o praticante desenvolva uma conduta ética, é essencial uma trajetória mais cuidadosa e segura para sua realização.

O propósito da meditação neste âmbito é, para além de qualquer ideologia, realidade transcendental ou benefício pessoal, uma ação individual livre e de vontade própria em busca de estados superiores de consciência cujos frutos são devidamente compartilhados no mundo. Ela permite que nos tornemos mais humanos e despertos para o cotidiano da vida.

O legado de R.Steiner, com realizações no campo social, artístico, da saúde, educação, agricultura, economia, é uma inspiradora imagem da Meditação, que é o fundamento de todo o conhecimento da Antroposofia.

Eliane Utescher

Psicóloga / Terapeuta Biográfica

13/03/2020

Published in: on 03/04/2020 at 7:30 p04  Deixe um comentário  

Caminho Interior

Claude Monet

Um tema fundamental para a compreensão do significado, da abrangência e da profundidade da Antroposofia, é o que Rudolf Steiner denominou de Caminho Interior.

Como a própria palavra já diz, trata-se de uma jornada individual de auto- conhecimento e auto- desenvolvimento que consiste, inicialmente, na prática de vários aspectos e atitudes mais nobres da alma, como tolerância, gratidão, compaixão, assim como o controle e a contenção de impulsos ligados à nossa natureza mais primitiva, como a cólera, a vaidade, a inveja.

Ao longo de toda sua obra, podemos encontrar inúmeros exercícios e indicações para o fomento de tais características. Momentos de paz interior, de silenciosa observação do mundo e de si mesmo, fazem parte do cotidiano daquele que busca em plena consciência e livre arbítrio, o aprimoramento de sua humanidade.

Colocando em termos da linguagem da Psicologia, podemos dizer que este tema está relacionado ao desenvolvimento do Ego na direção do Self, da depuração das necessidades mais instintivas da nossa constituição, em favor de qualidades éticas e humanas mais elevadas.

Para a Ciência Espiritual, a evolução caminha na passagem de comando do nosso eu inferior, para o nosso Eu Superior, nossa verdadeira identidade.

Em resumo, como assinalado acima, o cultivo desse, por assim dizer, treinamento, representa uma etapa inicial deste Caminho Interior, um preparo indispensável para a lapidação do caráter afim de que possamos adentrar com mais segurança no âmbito da Meditação propriamente dita.

Mas esse é um tema para um próximo post.

Eliane Utescher

Psicóloga / Terapeuta Biográfica

15/11/2019

Published in: on 03/04/2020 at 7:30 p04  Deixe um comentário  

A Força da Conexão

Eros e Psiquè . Canova
                                                       Eros e Psiquè
“Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
                                                                                                                                                      A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
      Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
                                                                                                                                        Mas cada um cumpre o Destino
                                                                                                                                                    Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
                                                                                                                                           E, inda tonto do que houvera,
A cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.”
                                                                            Fernando Pessoa

A inspirada poesia de Fernando Pessoa é uma bela imagem para o que se revelará, no final, como sendo o surpreendente encontro de alguém consigo mesmo.

Da mesma forma, a maravilhosa escultura de Canova, Eros e Psiquè, nos contempla com o cuidadoso empenho do amor em amparar a alma desvalida no chão.

Ambas são boas metáforas para a arte do encontro e do vínculo que se estabelece na relação entre o paciente e o psicoterapeuta na abordagem clínica antroposófica.

Inúmeros são os motivos que levam uma pessoa a procurar apoio emocional: uma doença, a perda de um ente querido, uma ruptura afetiva, uma crise existencial. Fato é que ela busca ajuda para algo que não está conseguindo fazer por si só:  a reconexão com a vida.

Inicialmente, o terapeuta utiliza dos seus recursos para formar o diagnóstico, obter uma visão abrangente da situação, e das ferramentas necessárias ao tratamento. Leva em consideração a constituição do paciente, a dinâmica dos corpos, a correlação entre as instâncias da alma, a etapa biográfica. Ao longo do processo ocorre, então, o momento onde ele precisa se abster de todo saber e abrir o espaço entre si e aquele que se encontra à sua frente. Silencia a sua mente.

Ele sabe que o vazio é necessário para que algo de natureza sutil e sanadora se manifeste. Ali, bem na região do meio, da troca, território do humano por excelência. Ele abre o seu coração e assim instaura a conexão amorosa que acolhe o outro e o leva de volta ao caminho de casa. Ao seu próprio Eu.

Para a Ciência Espiritual de R.Steiner, o amor é a causa última do desenvolvimento humano.

Ciente de que está a serviço de uma força maior e mais curativa, o profissional promove a alternância entre a fala e a escuta, para que o intermezzo carente de sentido, vá dando passagem ao que verdadeiramente preenche, ao que é pleno de significado, ao que é Presença.

“Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou no meio deles”.                                                                                                                               Matheuz  18:20

Eliane Utescher

Psicóloga / Terapeuta Biográfica

20/09/2019

Published in: on 08/10/2019 at 7:30 p10  Deixe um comentário  

Vitalidade e Consciência

A Criação de Adão . Michelângelo

No tratamento clínico em Psicoterapia Antroposófica, um dos aspectos relevantes levados em consideração, é o estado físico/ orgânico do paciente que procura apoio psicológico.

Ciente das leis que regem a dinâmica dos corpos que constituem a natureza humana, a saber, corpo físico, corpo vital, corpo emocional e corpo essencial (Individualidade), temos que manter o foco na saúde como um todo, o que, algumas vezes, pode significar uma condução terapêutica inicial que privilegia a regeneração das forças vitais em detrimento da aquisição de mais consciência.

Isso ocorre basicamente em casos de doenças graves, como, por ex, o câncer, cuja convalescença durante a rádio e/ou quimioterapia, consomem enormemente a energia vital do paciente. Calor e acolhimento são fundamentais.

Durante um certo período, ele mal tem forças para dar conta do mal estar físico que esses procedimentos desencadeiam, que dirá elaborar questionamentos sobre os desequilíbrios emocionais subjacentes à sua doença.

É preciso que, o cuidado com os ritmos diários, com sua “nutrição” – sono, alimentação, lazer, etc – sejam bem preservados durante o tratamento psicológico.

Em outras palavras, a busca de equilíbrio, neste contexto, significa, num primeiro momento, optar por uma abordagem que estimule a relação do paciente com a vida através de dinâmicas interativas, abordagem corporal e atividades artísticas revitalizantes, para que, num segundo momento, quando ele esteja mais organicamente recuperado, possa, aos poucos, ir desvendando e compreendendo racionalmente as questões que exigem mais consciência ,que consomem mais energia, como por ex. ,os pensamentos, sentimentos e anseios conflitantes em sua alma.

Eliane Utescher

Psicóloga / Terapeuta Biográfica

26/07/2019

Trauma e Espiritualidade

 

Através da experiência de estar ao longo dos últimos 13 anos em praticamente todas as catástrofes que aconteceram no mundo, posso concluir que o trauma é sim uma ferida, uma abertura onde o organismo se abre. Nessa ferida podem entrar novas dimensões da vida, e assim, estas novas percepções que o indivíduo tem, podem ter características de céu ou de inferno.

Quando a pele se rompe no organismo humano, alguma coisa sai para fora, que pode ser o sangue; alguma coisa pode entrar, como os germes, por ex, que trazem uma infecção. Em geral, uma ferida no corpo se cura por si só. Assim também acontece com uma ferida anímica. Uma ferida na alma também se cura pelas forças internas que possuímos, pelas resiliências que temos. Mas também podem entrar “bactérias” que acontecem de ser um risco de vida, feridas que infeccionam animicamente.

Pedagogia de Emergência é uma providência que busca cuidar do trauma quando ele acontece. O trauma pode ser como um fechamento, um endurecimento, um congelamento consequente do choque. O estado de sono, a alimentação, a respiração, tudo muda depois disso, o choque causa um distúrbio rítmico muito forte na pessoa.

No choque traumático a pessoa fica presa no corpo, é como uma câimbra, e enquanto ela permanecer nesse endurecimento, a ferida não se cura. A Pedagogia de Emergência busca fazer a harmonização dos ritmos naturais no campo das forças vitais, no campo etérico.

Com relação à esfera das emoções, no corpo astral, o caminho é semelhante. Trauma nesse âmbito, é um distúrbio das relações. Cada sentimento que a gente tem sai da respiração, que é diferente quando se está alegre ou triste. Na inspiração acordamos, nos voltamos para nós mesmos, e na expiração como que adormecemos, e estamos mais para fora, no outro. Nesse ritmo está a nossa capacidade de nos comunicar, dialogar, nossa capacidade social.

No trauma ocorre uma profunda inspiração e não se consegue mais expirar, a pessoa fica presa dentro de si mesma em tensão. Esse é o motivo do isolamento das pessoas depois de um trauma, elas só conseguem vivenciar a si próprias e se tornam egoístas, a empatia se apaga.

Distúrbio anímico também se dissolve com a Pedagogia de Emergência. A nível da essência espiritual humana, do Eu, o trauma é uma experiência de morte, como se a pessoa fosse arrancada dela mesma; ela tem a sensação de estar fora do corpo, vendo-se do lado de fora, e não sente mais as partes do próprio corpo. Como harmonizar o corpo e os sentimentos?

O trauma se desenvolve em 4 fases, assim como as leis:

  • Fase aguda, onde aparecem muitos sintomas, como por ex., pulsação rápida, respiração curta, tremedeira, suor, porém eles desaparecem rapidamente
  • Reações pós-traumáticas, onde podem aparecer centenas de sintomas diferentes, como problemas de concentração, problemas de memória, situações de flash back anormais de lembranças, distúrbios do sono, da alimentação, da respiração, raiva, depressão, etc…Esses sintomas podem demorar alguns meses, porém se permanecerem é mais problemático, a ferida se transforma em doença.
  • Transtornos pós-traumáticos, que são os sintomas da segunda fase que se instalaram e viraram doença, como por ex., hiperatividade, depressão, ansiedade, que podem durar anos.
  • Mudanças permanentes da personalidade, que é a cronificação da fase anterior.

O trauma vai corroendo a nossa biografia. As pessoas podem machucar os outros, a si mesmas, ou se tornarem suicidas. As duas fases iniciais atacam principalmente o corpo físico e o corpo vital (etérico), na terceira fase os sintomas se instalam no corpo emocional (astral), e na quarta fase a identidade da pessoa fica completamente comprometida, ela tem falta de identidade.

Os quatro corpos constituintes do ser humano se comportam como a construção de uma casa por onde passou um terremoto. Algumas partes ficam com rachaduras de forma que ninguém pode viver aí, ou a casa inteira desmorona. O trauma é um terremoto na alma das pessoas. Porém, também é fato que , quando os terremotos acontecem, algumas percepções, que não existiam anteriormente, entram em nós.

O trauma é uma vivência de limite, de limiar entre a vida e a morte, onde as experiências de morte estão muito próximas. Para alguém chegar na morte, existe o caminho natural, existe o caminho iniciático, cujo objetivo é a ampliação de consciência, e existe um terceiro caminho através do trauma. Esses 3 caminhos são muito diferentes entre si. O caminho da iniciação é uma preparação para o caminho natural, mas o trauma é um caminho que não foi tomado em liberdade, onde o indivíduo foi jogado nele, ou onde ele ultrapassa o limiar sem estar pronto.

No limiar da morte os corpos suprasensíveis começam a se desprender do corpo físico. Quando o corpo etérico se desprende, aparece o panorama da nossa vida, os sentidos se desprendem do corpo físico, a orientação do tempo se perde, assim como todos os ritmos da Terra. Na sequência, quando a orientação à minha própria pessoa também se perde, essa é do âmbito do corpo astral, e por fim, ocorre a dissociação aonde se sai de si mesmo.

Todas as pessoas que tem experiência de quase morte, fazem o mesmo relato. Todas essas coisas transcorrem no trauma. Mas acontecem por partes, por ex., o corpo etérico se retira de um órgão, como do pulmão ou do intestino. Dessa forma, no trauma, quando as forças etéricas são arrancadas de um órgão, elas impregnam a alma, e assim, a função de morte do intestino vai para o anímico.

Já o corpo astral arrancado do corpo físico no trauma, leva a que, pensar/sentir/querer, que estavam juntos como uma água em um jarro e tinham uma forma, se desmanche quando quebra o jarro e as qualidades anímicas se espalham gerando doenças psico patológicas.

Todo caminho iniciático, todas as escolas de mistério, conduzem até este ponto, quando as 3 partes da alma se separam; o Eu desenvolvido e forte sustenta as coisas, são vivências de um caminho interior.

O trauma é o encontro não preparado para se chegar ao limiar. Ele pode destruir uma pessoa. No mínimo, ele fere muito, mas também tem muitas pessoas que conseguem trabalhar e integrar isso na sua biografia, e elas podem aceitar o seu destino. As pessoas que conseguem trabalhar o trauma são amadurecidas, elas sabem distinguir as prioridades, a espiritualidade tem um papel importante.

Hoje a ciência já fala de um crescimento da síndrome pós-traumática. Como acontece o crescimento pós-traumático?

A raiva e o ressentimento mantem o indivíduo preso no trauma. É através do perdão que ele pode ser libertado, mas esse processo pode demorar muito. A raiva é o primeiro passo para a transformação de um trauma. A raiva, o desespero está dentro do ego ; depois de um tempo esse ego pode deixar de ter necessidade de vingança, e aí se cria uma abertura por onde entra alguma coisa que preenche esse espaço anímico. Isto que flui para dentro é o Eu Superior. Isso é uma dádiva, quando o eu inferior se “sacrifica”, por assim dizer, e dá espaço para o Eu Superior.

O trauma cria uma relação de vítima e algoz que, na próxima encarnação vai exigir uma remissão. O trauma tem um aspecto de morte e ressurreição.

Finalmente, um terceiro momento nesse desenvolvimento, é quando a própria substância crística do Eu Superior flui para dentro deste espaço. É a partir desse ponto que o perdão se torna possível, quando a gratidão e a graça se manifestam.

 

 

Palestra proferida na sede da Sociedade Antroposófica / SP

Bernd Ruf  /  Pedagogia de Emergência

25/08/2019