O que está mudando hoje, tanto dentro quanto fora do ser humano ? Não sei as exigências dos tempos atuais, mas queria compartilhar alguns pontos que poderiam indicar essas mudanças.
Quero questionar uma posição que pode estar indicando a ligação com o que toda esta problemática está relacionada. O que está provocando a origem dos problemas atuais ?
O que acho que mais radicalmente mudou nesses 100/150 anos foi o espírito. E aqui, não estou falando do espírito dos tempos, nem o espírito dos elementos. Estou me referindo ao espírito em si.
O que é o espírito ? No que reconhecemos a existência e a atuação dele ? A expressão do espírito se manifesta no fato do ser humano poder mudar. Ele nunca permanece o mesmo. Nos modificamos de acordo com a situação dada, na relação com alguém. E mesmo assim, somos os mesmos, porque sabemos muito bem que, até o encontro com determinada pessoa, nunca pensamos, sentimos ou agimos da mesma maneira. Somos algo que permanece sempre o mesmo, que é a ação passada do espírito, e ao mesmo tempo, nos tornamos outro, que é a ação presente do espírito.
O permanente e o “em mudança” é uma relação constante: eu sou o espírito que fui e eu serei o espírito ativo no presente se modificando para o futuro. Eu sou e eu serei, são modalidades diferentes de espírito. Espírito a gente não vê, nunca ninguém viu o Eu, mas a gente percebe as manifestações do Eu. O que vemos na corporalidade do homem é o Eu do passado, o espírito do passado.
De maneira que de fato vemos o Eu. E hoje os seres humanos são cada vez mais diferentes uns dos outros, principalmente nas suas fisionomias.
Existe uma fotógrafa italiana que a partir de 2016 se tornará muito famosa, Georgia Fiorio, que já fez muitos projetos interessantes, por ex., um deles que durou 5 anos aonde se propôs a tornar o espírito visível. Ela estava convencida da existência do espírito, queria retratá-lo em mudança, e para isso visitou várias comunidades espirituais aonde as pessoas vivem para e a partir do espírito. Mergulhou na prática espiritual dessas pessoas, nas meditações, nos exercícios, e depois de meses, ela começou a fazer milhares de fotografias. Então avaliou as fotos com as pessoas da comunidade, os gestos, as posturas, as fisionomias, e disso surgiu um livro , “Rituais”, onde, de cada comunidade, ficaram resumidas profundas e comoventes imagens que podem afirmar, através dos movimentos do rito, a manifestação do espírito.
Um outro projeto que ela fez foi fotografar bustos de egípcios do passado em diferentes ângulos ; neste trabalho se percebe algo que, a cada momento, é o mesmo e, ao mesmo tempo, outro. Esta exposição será apresentada no museu do Louvre no ano que vêm.
A filosofia ocidental se inicia quando começamos a reconhecer o mesmo no outro, ou o outro no mesmo. Em Sócrates e nos diálogos de Platão, o “normal” começa a ser questionado.
Hoje não vivemos mais na percepção, mas na representação que compartilhamos, porém de fato, não vemos o que está aí – o mesmo e o diferente. Isso gera um problema em nós. Com esse desafio exercitamos realmente o olhar, a percepção começa a ser só o ponto de partida.
O que está mudando hoje em dia ?
Até o final do século XIX desde o início dos tempos, o movimento do espírito foi no caminho da diferenciação e o espírito se diferenciou, a atuação do espírito provocou que as coisas se separassem umas das outras.
Se hoje temos diferentes línguas, religiões, concepções de mundo, predileções, isso tudo é fruto da diferenciação do espírito. Para os cristãos os muçulmanos não são tão bons, para os muçulmanos, os judeus não são tão bons, para os judeus, os indianos não são tão bons, e assim por diante.
Isso porque “o meu grupo” acredita que possui a verdade, ou pelo menos, a melhor opção. Durante algumas décadas, a Antroposofia também achava isso e considerava que suas concepções eram as corretas. E isso é uma manifestação do espírito passado, mas o espírito hoje atua de forma diversa. Hoje o espírito integra.
O espírito antigo criava diferenças e o de hoje procura relações. Isso significa que, para o cristianismo, o islamismo se torna muito interessante, que para o islamismo, o judaísmo se torna muito interessante, que para o judaísmo, o induísmo se torna muito interessante. O ser humano começa a se abrir para o diferente, mas não para se tornar o diferente, e sim para se modificar.
Mantemos a individualização, ninguém será como o outro, mas começamos a nos interessar pela diversidade do outro. Não porque se trata de um valor moral e sim porque se trata do próprio espírito. Não temos que convencer o outro das nossas próprias convicções, mas cada um se integra mais ao espírito, se torna mais integrativo na vida.
Tentar convencer o outro da própria convicção não atua mais no espírito, isso é passado, não tem futuro, como o dogma. Poder viver de acordo com as próprias convicções sem tentar convencer os outros, e ser curioso de conhecer a concepção do outro, isso é o espírito do presente.
Imaginem isso no âmbito da experiência de Deus. Tentar ter a coragem de acreditar na sua própria experiência de Deus e não tentar comparar com a experiência de Deus dos outros. De viver a experiência própria de Deus com prazer e de não encontrar outros no qual o espírito está atuante. Ter um interesse livre no outro.
O espírito livre não se deixa irritar pelo espírito escravizado do passado . O espírito livre tem uma imensa alegria na diversidade do outro, no crescimento das possibilidades e principalmente na transformação de si mesmo e do outro. “Que eu permaneça o mesmo mas me torne o outro”. O futuro é espiritualmente cosmopolita, integrativo e não exclusivo.
Individualidade surge a partir do momento da individuação do espírito. Esse individualismo afirma : eu não sou como você, e no fundo, sou melhor que você e vejo muitos defeitos em você e poucos em mim mesmo. A forma integrativa do espírito sente alegria na diferenciação dos indivíduos e se alegra na diversidade das diferenças.
E essa é a transformação do espírito da atualidade. Ao mesmo tempo que estamos diante de guerras de fundamentalismo religioso, estamos testemunhando a valorização da tolerância entre as pessoas, da auto determinação e da dignidade individual do Ser. Essas duas coisas estão acontecendo simultaneamente. O último levante do espírito do passado e uma formulação intelectual e ética do espírito integrativo.
O espírito integrativo já está presente na formulação intelectual das pessoas, mas ainda não saiu do intelecto para a vida. Nesta esfera ainda estamos na fase do espírito anterior.
Será que podemos nos decidir a distinguir as diferenças de espírito ? Pessoalmente eu me decido pelo espírito integrativo ao invés do espírito separatista porque o futuro não virá sozinho e não virá naturalmente. Ele só virá conscientemente, ele precisa da nossa decisão porque nós queremos nos tornar cidadãos do futuro. Se não nos decidirmos por ele, o espírito conservador vai continuar e de forma destrutiva.
Até o século XIX o espírito separatista atuou em prol da individualização. A transição começa a partir do século XX com o totalitarismo, o fascismo, o comunismo, o capitalismo , que conduzem a genocídios e formas totalitárias até hoje. Em todos os lugares a vida é destruída a partir de uma concepção que quer se impor.
Vemos a partir do século XX o economismo determinando a estética do nosso mundo urbano. Vemos também a possibilidade da hospitalidade ser um valor maior do que o lucro e a solitude podendo ser considerada o maior valor para o ser humano, a qualidade mais bela. Rudolf Steiner desenha um mundo onde o maior valor é a liberdade.
O economismo e as conseqüências devastadoras do mercado livre , pode ser agora avaliado no que vemos acontecer no mundo com os refugiados.
A virtualização do mundo é um outro fator a que assistimos mais recentemente. Quanto tempo cada um hoje vive com seus aparatos no mundo virtual ? Não quero dizer que é ruim, mas eles prejudicam o espírito integrador e mantém no poder o espírito do passado. O século XX é de transição entre o espírito separatista e o espírito integrativo.
O totalitarismo, o economismo e a virtualização são expressão do espírito diferenciador retardatário. O espírito atrasado se torna mal. E o que significa mal ? Significa que o espírito começa a desrespeitar o ser humano e que sua humanidade é desrespeitada. Percebo que hoje, em todos os lugares do mundo, as almas das pessoas estão cada vez mais sensíveis ; muito inteligentes e exigentes, ou seja, precisando de muita coisa. Cada um é tão rico e tão sensível em sua alma.
Assistimos hoje a muitos conflitos entre grupos de pessoas, entre famílias, e cada um é muito sensível, frágil e inseguro – ou seja, tocável. E por ser tão tocável, fica-se com vontade de se distanciar do outro. E agora se trata de descobrir como se consegue estipular a relação entre proximidade e distanciamento. As duas dinâmicas acontecendo ao mesmo tempo.
Há a necessidade muito aguda de liberdade que cada um vivencia. Se agora passarmos a considerar a sensibilidade das almas como um pressuposto, vamos atuar de forma diferente. Pressupor a susceptibilidade nos leva a atuar de forma diferente. Se somos muito suscetíveis, tudo nos agride.
Precisamos observar quando somos sensíveis e quando somos suscetíveis. Na sensibilidade conseguimos absorver o mundo, e na suscetibilidade, tudo nos fere. O maior valor hoje é a transformação. Na medida em que nos transformamos, mesmo pouco, isso nos permite perceber o espírito.
Podemos procurar situações em que tenhamos prazer em mudar, por exemplo, nas comunidades de amigos, aonde aconteça experimentação psicológica e espiritual. A percepção do espírito integrativo começa na capacidade de transformação de nós mesmos. E o inverso nos aprisiona ao espírito conservador. A força de transformação é nosso bem maior.
Palestra proferida no Auditório da Sociedade Antroposófica
Bodo Von Plato
15/09/2015