No Congresso de Natal de 1924 Rudolf Steiner proferiu a seguinte frase : “ Que as pessoas se tornem aquilo que fortifica o mundo”. Todos nós temos uma tarefa sanante que cura algo no mundo. No evangelho, os discípulos foram enviados para sanar o mundo. Steiner disse que o impulso crístico da atualidade se mostra na atividade de cura.
O que a proposta de sanar tem a ver com o Cristo ? Steiner falou muitas vezes sobre a força de vontade e a coragem de curar. Quando ele falava sobre Ita Wegman, ele dizia que ela tinha essa coragem. Gostaria então de abordar nesta palestra de hoje, as qualidades de alma que Ita Wegman possuía e que todo ser humano da atualidade também possui.
Em relação ao pensar, o curar tem algo a ver com o reconhecer. Se quisermos ajudar alguém, temos de entender o que lhe falta. Nós vemos o sofrimento de uma pessoa, mas só ver não significa a solução para resolver esse problema. É uma tarefa de compreensão entender a partir do que e de onde vem o sofrimento do outro, assim como a ajuda para tirar esse sofrimento. Sabemos que hoje não são apenas seres humanos que sofrem, mas sim toda a Terra.
A consciência desse sofrimento existe em muitas pessoas, mas muitos não têm o diagnóstico nem a terapia corretos. Se realmente queremos ajudar para a solução do sofrimento, temos que trabalhar intensamente no âmbito da compreensão. O termo diagnose (do grego) significa que se olhe através da doença para a terapia.
Quando perguntamos a alguém “o que lhe falta ?”, pode ser que seja o sentido da vida, um amigo,ou o processo de ferro no sangue; quando se pergunta isso, não é uma questão de perguntar o que o faz sofrer, mas sim, do que ele tem necessidade. O que temos que aprender não é somente ver a necessidade, mas o que a origina e como podemos prover essa necessidade.
É uma questão de coragem olhar o que está além do aparente para chegar ao cerne do problema. É muito simples dar sonífero a quem não consegue dormir. Pesquisar o motivo da insônia já exige mais trabalho. E trabalhar com o paciente no problema que causa a insônia, exige outro empenho. É uma questão de coragem, de força de vontade. Porque adentramos uma situação difícil, não se tem a resposta imediatamente, pois o sintoma não é o problema em si.
Tenho que fazer uso do meu Eu que quer reconhecer algo do problema. Nos âmbitos social e político, a explicação para tudo é muito rápida, só se corrigem os sintomas. Mas se queremos passar além disto, faz-se necessário adquirir uma força de vontade que quer abarcar e saber. Isso é um princípio Crístico primordial: fazer juízo próprio e uso da própria razão. Para Emanuel Kant “o conhecimento é o início para o ser humano poder sair da sua dependência auto-inflingida”. Se nós queremos curar, temos que dar conta da tarefa de esclarecermos as coisas.
Antroposofia é uma ciência do conhecimento. Ela não é primariamente algo que concerne ao sentimento, mas sim ao pensar. Não é apenas pensar, mas ela começa com o pensar e com a atividade do Eu dentro do pensar. Eu desconfio daquilo que vem a mim como julgamento alheio, eu próprio quero formar meu julgamento.
Ita Wegman antes de ser médica era fisioterapeuta e trabalhava com massagem, mas cada vez mais se sentia frustrada porque tinha que executar o que os médicos indicavam para os pacientes, não lhe era permitido formar o próprio diagnóstico nem a terapia. Ela queria assumir a responsabilidade pelo que fazia, mas só podemos assumir responsabilidade pelo que reconhecemos e entendemos por nós mesmos.
A Medicina Antroposófica começou como um novo caminho cognitivo. A Pedagogia Antroposófica também começou com esse mesmo caminho. Na pedagogia temos a tarefa de saber, por exemplo, o que leva a criança a ser muito agitada. A Agricultura Antroposófica também tem esse impulso, onde tentamos entender o que leva a planta a criar uma doença, e não só utilizarmos produtos químicos.
Assim vemos que em todos os âmbitos, se queremos atuar de forma sanante, precisamos de um profundo julgamento, e a Antroposofia é um impulso de coragem para formar seus próprios julgamentos. A atuação crística do século XX se apresenta em pessoas individuais que adquiriram a capacidade de criar uma atividade própria no pensar em vários âmbitos da cultura. Pessoas que usaram um pensar diferente da corrente comum para procurar a verdade. É uma questão de coragem ser contrário ao que a massa pensa ou comunga. Quantas vezes assumimos os julgamentos alheios sem passar por um pensar próprio? A vontade de curar tem a ver com coragem.
Mas situações humanas não apelam apenas ao pensar, mas também ao nosso sentir. Segundo R.Steiner “ se nós sentirmos o ar que nos circunda, ele tem oculto em si a coragem”. Todos nós sabemos que pessoas que tem medo, também têm problemas respiratórios. Se prestarmos atenção profundamente, perceberemos que é nesse âmbito que abarcamos o mundo para dentro de nós e nos expandimos no mundo. No âmbito da organização rítmica da respiração, estamos abertos. Todos nós inspiramos e expiramos o mesmo ar.
Percebemos que neste âmbito do sentir comungamos com o entorno. É uma questão de coragem se permitimos essa aproximação do outro, ou se nos afastamos. A inspiração pressupõe uma confiança no mundo, um gesto de simpatia, e a expiração é algo do qual me distancio. Quando temos uma situação difícil tendemos a não querer inspirar, pois trazemos para dentro de nós o problema.
Ita Wegman tinha esse ímpeto de ir até a pessoa doente. Ela queria que a situação do paciente se aproximasse para bem perto de si. Há que se ter coragem para inspirar o sofrimento e a necessidade do outro. Sabemos que Francisco de Assis se dirigia aos leprosos e não se contaminava, ele adentrava essa miséria.
R.Steiner dizia : “ não amem somente os doentes, mas aprendam a amar as doenças”. Geralmente temos uma relação muito negativa para com as doenças, mas também para com os problemas sociais, as guerras, para tudo o que é negativo no nosso mundo. O convite para “amar” uma psicose ou uma leucemia soa tão absurdo como se tivéssemos que amar as drogas ou a guerra, pois é obvio que são características que tem a ver com o mal, e o queremos manter bem distante. Podemos perceber que quando nos distanciamos do mal, ele não desaparece, mas procura outro endereço.
O mundo inteiro está hoje repleto de pessoas que estão fugindo, são 60 milhões de refugiados. Os países fecham suas portas, mas o problema não se resolve. É óbvio que os refugiados não são o mal, mas do que eles estão fugindo é muita maldade e teríamos que nos haver com isso.
O impulso crístico tem a ver que se permita que aquilo que é escuro e mal se aproxime de mim na esfera do sentir. Cristo acolheu Judas em seu circulo de discípulos. Exige uma certa coragem admitir o mal nesta esfera e inspirá-lo.
Ita Wegman tinha uma força cognitiva médica inspiradora. Isso inclui a inspiração. Ela era uma médica que procurava o encontro com o paciente, com a doença. Isso não quer dizer se tornar doente também, mas sim, deixar a doença se aproximar tanto afim de que o impulso da terapia desperte e possa ser aplicado. Ela, em silêncio, deixava-se permear pelo paciente, e aí surgia a resposta. Muitos impulsos terapêuticos novos surgiram da convivência com o doente e a doença, e não com a distância. Na aproximação pode surgir uma intuição da terapia. Essa força do amor que se une ao mal possibilita uma transformação. Se quisermos realizar esse impulso de cura no âmbito do sentir, temos que permitir que a maldade do mundo chegue a nós.
Como se dá essa coragem no âmbito do querer? Esse âmbito é a vida e a morte. No pensar, luz e trevas, no sentir, calor e frio, e no querer sempre se dá a luta entre vida e morte. Sabemos na medicina que a morte está sempre presente nas doenças graves. Mas também nas nossas atividades sociais, sempre há a possibilidade de destruição, do fim, e com isso acoplado vem essa tonalidade da alma que tem a ver com a falta de esperança.
O que nos é colocado neste âmbito como tarefa é que conquistemos a confiança. Na Grécia havia uma indicação de que os médicos não deviam tratar os pacientes desenganados. Provavelmente isso lesaria a reputação do médico. O grego tinha uma relação problemática com a morte – ela era o fim da vida, um nada. Para R.Steiner os médicos deviam se digladiar com a morte, se confrontar com a morte. A tarefa do médico é ajudar para a vida, eles devem fortalecer as forças vitais do paciente, e não formar prognósticos à respeito da morte, pois senão o paciente morre. O terapeuta não deve abrir mão da vida, deve manter a esperança.
Hoje em dia na Terra podemos prognosticar a morte em vários âmbitos: social, ecológico, econômico. Muitos jovens que se retraem para a vida particular já abriram mão de atuar no social ou na política, como faziam os jovens de 20 anos atrás. Muitos deles não têm mais esperança de que possa vir a superação de uma situação que atualmente se apresenta no mundo.
Ita Wegman tinha essa força incrível na superação do indivíduo, tinha uma fé que movia montanhas. Ela tinha essa fé não só em respeito às doenças, mas em situações difíceis da vida dos pacientes, força de vontade para procurar uma solução junto com o paciente. R.Steiner dizia que os médicos teriam que desenvolver força de vontade para o carma, para o destino. Assim que, se como médico me empenho para transformar uma situação do paciente, me ligo ao seu destino e a situação se torna um pouco minha também. Não é suficiente dar um bom conselho, o paciente tem que sentir que o médico está de forma existencial lutando e buscando uma solução.
O impulso crístico é, nesse sentido, a disposição de entrar com responsabilidade numa tal situação ; quando nos unimos a ela não somos mais só espectadores, mas nos tornamos parte dela. Na atualidade, esse impulso no âmbito social tem a ver com que atuemos com o nosso querer de tal modo que nos tornemos parte dele e assumamos responsabilidade por ele. Muitas vezes não queremos nos comprometer, entrar numa situação difícil. Mas seria sim nossa tarefa nos envolvermos com o que sabemos ser um descaminho. Faz parte sanar o que é difícil.
Ita Wegman possuía a capacidade de sacudir os pacientes para lembrá-los dos propósitos de suas vidas. Trata-se da questão onde, com o meu Eu, entro no querer. Temos que olhar para esses 3 âmbitos, pensar/sentir/querer, e o Eu nessas forças. Sua clinica era um espaço onde o impulso crístico vivia na comunidade como um todo. Pessoas que desenvolvem essa vontade crística necessitam uma comunidade ao redor que também queira fazer isso dessa maneira. Muita alegria, muita leveza e calor viviam na clinica em Arlesheim, na Suíça. Um ambiente de cura precisa dessa leveza, de humor, de cores e alegria para não se tornar algo estático, estarrecido. Apesar de todas as dificuldades que encontramos no mundo atual, encontramos também esses impulsos.
O Espírito de Cristo sopra onde ele quer.
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Palestra proferida por Peter Selg
Sociedade Antroposófica do Brasil
22 /03/ 2017
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