O papel do pensamento e do sentimento na Meditação

Na lenda do Graal existe um primeiro momento onde Parsifal se encontra com o rei ferido. Ele estava em busca do espírito e, com a educação mais nobre que possuía, encontra um ser humano ferido. Essa educação toda vale para o espírito através do mundo, mas perante o rei ferido, não vale mais nada. O rei Amfortas é a imagem do ser humano em si que se feriu. Qual seu sofrimento ? Parsifal não sabia e não perguntou.

Com o conhecimento da humanidade até aquele ponto, não havia como perguntar sobre a ferida da relação entre o corpo e o espírito, entre a corporalidade e a espiritualidade. Apenas a alma é capaz de curar esse ferimento, e essa alma só pode atuar em conjunto com outra alma. O Graal não era capaz de curar essa ferida espiritualmente incurável, mas, através da pergunta da alma que se comove, a cura se torna possível. Se torna possível mediante a compaixão e o encontro das almas , da conexão das almas através da pergunta.

Há mais ou menos 100 anos houve um acontecimento na Europa que teve um impacto importante para todo o século XX ,fato este sem o qual o século XXI não teria encontrado a si mesmo. A identidade do século XX se define neste momento, entre 1912 e 1915. Isso a que me refiro foi a publicação da obra mais importante de Franz Kafka “A Metamorfose”.

Ela retrata a estória de um ser humano que acorda pela manhã com a consciência de si mesmo, mas o seu corpo não é mais humano e sim o corpo de um inseto, uma espécie de besouro, um escaravelho. O ser humano que perde a sua aparência humana, não é mais considerado humano. Mas essa estória revela que não somos humanos pela nossa aparência, mas sim na medida em que somos reconhecidos como humanos por outros seres humanos. Ela revela como somos dependentes da percepção dos outros.

Antigamente dependíamos apenas de Deus e da natureza, mas a partir de Kafka nos é mostrado o raiar de uma nova era onde não dependemos só de Deus e da natureza, mas de outro ser humano.

Quanto mais as pessoas ficam inteligentes mais se criticam, e seria bem mais interessante se os homens deixassem valer a diversidade da diferença. A tolerância deveria ser uma atitude passageira e o que deveria se colocar no lugar dela é o reconhecimento – apenas ele torna o ser humano, humano. Os sentimentos que são evocados quando somos reconhecidos e compreendidos nos dá a medida de que seres humanos precisam de seres humanos.

Todos nós, de uma certa maneira, somos especialistas em sermos seres humanos, mas isso não basta, ainda que vemos como algumas pessoas se tornam os modelos de humanos para nós, como p.ex Nelson Mandela, Gandhi, Martin Luther King. São pessoas que conseguem viver suas vidas para além do limite do particular, e com isso ajudam outros a descobrir e reforçar o humano em nós. Será que podemos defini-los como especialistas enquanto seres humanos ? Acho que é mais o contrario disso, eles conseguiram enxergar não o específico, mas o que vive no ser humano como humano. E Meditação é esse humano se revelando em cada ser humano.

Antigamente a meditação era um caminho que possibilitava a conexão com uma realidade espiritual, mas agora, é um caminho para que o ser humano possa reconhecer o humano em outro ser humano para além de todas as ideologias e de tudo o que é religioso. O tornar-se humano no ser humano é o caminho da Meditação e em seu centro se encontra o tornar-se um ser humano que, por disposição, já se é.

O ser humano se encontra em um limiar existencial, mas no exato momento em que começa a se perguntar “quem sou eu enquanto ser humano ?”, começa um novo destino. Até então, valeu um destino que o conduziu, mas a partir de agora o que valerá é até onde pode carregar o seu próprio destino. A partir da pergunta “Quem sou eu ?”, se o ser humano não age, principia um processo de desumanização. Os genocídios por convicções religiosas demonstram isso. A humanidade conheceu excessos de desumanização no século XX, a estória do Kafka é o que ela vivenciou até então.

O que será que o ser humano precisa quando começa a carregar seu próprio destino ? O que ele precisa quando se faz a pergunta “ Homem, reconheça a si mesmo ?”. A partir do momento que não se é mais carregado pelo destino, e sim que o carrega, o homem percebe que não consegue fazer isso sozinho, toda a educação não o ajuda nisso, ele precisa de outros seres humanos que o queiram enxergar, que o reconheçam. E para que se torne uno o ato de ser reconhecido, para que um e outro se torne um, é necessário uma nova unidade criativa, a união do sacerdote e do ferreiro. E isso se torna o centro de experiência Crística.

No Evangelho de João cap. V isso é descrito quando o Cristo diz que seus discípulos não são mais seus serviçais, mas se tornaram seus amigos. Esse é o momento de nascimento de uma nova união de seres humanos.

Gostaria de abordar agora algumas qualidades fundamentais que são experiências que gostariam de se tornar valores, em outras palavras, trazer o esboço de um novo ensinamento das virtudes, qualidades do humano universal que só são possíveis de experienciar na relação com seres humanos. Isso não dá para ser deduzido de forma apenas filosófica, é preciso ter-se a experiência humana compartilhada na própria vida, e ela tem que ser recíproca.

São sete (7) experiências,qualidades que podem se tornar virtudes:

1)    Respeito perante a solidão

O homem moderno autoconsciente é solitário, ele tem esta espécie de saudade de se inteirar com a solidão, o Eu é solitário, a amizade não serve para superá-la, mas sim para se tornar guardiã da solidão do outro.

2)    O outro sempre permanecerá um enigma

Quanto mais eu compreendo e reconheço o outro, mais ele se torna enigmático, é a consciência de si mesmo a partir da alteridade, o si próprio se reconhece a si mesmo, mas o autoconsciente sempre vai ser permeado pelo estranho, não existe caminho de volta para o paraíso, o estranho é o que é verdadeiramente familiar.

3)    A evidência

Esta qualidade tem um papel importante na amizade, o amigo não precisa se explicar ao amigo, este se torna visível e evidente, o que se reconhece não precisa de explicação ; nesse ponto, a amizade vai além do mero reconhecimento, ela nos torna capazes de reconhecer mais o outro do que a nós mesmos. Essa evidencia é o testemunho do humano no outro e a partir daí começa o seguinte processo : o outro carrega comigo o meu destino e isso é o que transforma a minha vida.

4)    A capacidade de se deixar impressionar

Todas as qualidades anteriores são uma preparação para esta que é a mais difícil, pois ela é trazida de fora, ela pode acontecer ou não; o decisivo é a pessoa que fala algo que nos impressiona. Quando prestamos atenção àquilo que nos move, isso gera alguma impressão em nós, e pode nem sempre ser algo agradável. Esse quarto ponto é onde a simpatia e a antipatia se tornam mensageiros para alguma coisa que vai muito além.

5)    Amar as contradições

Essa é uma qualidade totalmente nova, seria muito idealista negar as contradições. Porque será que a cultura dos poetas e dos músicos se tornou atuante nos genocídios e destruições ? Porque compasso e Mozart não se excluem de maneira nenhuma. O supremo bem e o supremo mal pertencem um ao outro. Quem acha que só se dirige ao bem, se dirige à uma ilusão. Se aceitamos a contradição como fato dado, deixamos de aplicar uma ética normativa, e passamos a nos aproximar de uma postura amante e compreensiva dos erros dos outros.

Segundo R. Steiner “Quanto maior a faculdade de consciência no ser humano, maior a sua inclinação para o mal”. Quanto mais consciente de si mesmo, mais o homem tem que aprender a desenvolver o manejo das diferenças, e nisso somos dependentes dos outros seres humanos. Quanto mais consciência, mais contradição, é necessário termos amigos que compreendam isso.

6)    Assimetria nas relações

Toda amizade é assimétrica, não existe justiça nela, senão não seria amizade. Um dá algo para o outro, o outro dá outra coisa, isso é muito diverso ; um relacionamento real e verdadeiro entre individualidades é assimétrico.

7)    A verdade se transforma em veracidade

O antigo ensinamento das virtudes platônicas se transforma, em um ensino moderno, no suscitar do próprio Eu na face do amigo ; a qualidade subjacente é a liberdade que vive no amor ao agir permanente. Permitir viver no amor ao agir, e deixar na compreensão da vontade do outro.   Isso é o cerne de uma nova ética, essa ética meditativa que surge na face do outro, esse outro que, através da amizade, se torna para mim o mundo espiritual. Esse mundo espiritual não vive no além, em um lugar distante, mas no ser humano que eu reconheço.

Finalmente, na meditação não existe um ensino linear de causalidade, pois não é porque se medita isso ou aquilo que a coisa vai acontecer, mas a meditação é sua própria pré condição e conseqüência. O Eu humano é do mesmo jeito. As 7 qualidades são pré requisito e conseqüência, e assim, dessa maneira, abandonamos o pensamento causa / efeito.

Palestra proferida por Bodo von Plato no II Fórum de Meditação na Sociedade Antroposofica em 31/08/2013

 

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Meditação na aquisição do Conhecimento

 

 Os objetos do cotidiano tem seu próprio mistério. Normalmente quando ouvimos escrituras sagradas , elas saem da boca dos sacerdotes. Mas na Ásia há uma lenda que conta que no começo da criação havia um ninho com dois ovos ; de  um deles saiu um xamã, e do outro saiu um ferreiro.

Como Caim e Abel, estes “dois ovos”, são aspectos que pertencem a nós mesmos, temos essas duas características dentro de nós, nossa herança vem tanto do céu quanto da terra. Os mistérios do céu estão em paralelo com os da terra, e todas as culturas têm essas estórias. Por exemplo, na mitologia grega um dos deuses do Olimpo foi rejeitado, desceu para a Terra e se dirigiu para a ilha vulcânica de Lemnos – ele era manco. Todos nós, de uma certa forma, vivenciamos essa queda e somos um pouco mancos. O então deus caído, Hefestus, tinha habilidade com as mãos para trabalhar com o fogo. Dessa forma, temos um deus feio e manco que depois se casa com Afrodite, a mais linda de todas as deusas, a deusa do amor e da beleza.

Na África, se alguém quer casar, vai ao xamã, mas se ele está fora da aldeia, vai-se para o ferreiro.

Temos assim duas tradições sagradas, a do sacerdote e a do ferreiro. E é essa a imagem quando pensamos no Cristo. Quem era seu pai ?     Um carpinteiro. Imaginem a sua infância fazendo objetos a partir da terra, como Hefestus.

Quando ouço as palavras da frase :  A redenção do ser humano é pelo sacrifício do Cristo, o novo Adão que redime o pecado de Adão e Eva – também lembro do assassinato de um irmão pelo outro, também acho que esse fraticídio é redimido.

A corrente do ferreiro e do sacerdote convergem no Cristo. Quando olhamos a tecnologia e os objetos cotidianos, deveríamos lembrar dessa herança. Por milhares de anos as estórias envolveram a técnica, portanto não há nada no mundo que não seja sagrado, mesmo esse microfone por onde falo.

Quando temos a imagem da tecnologia que se move do mal para o bem, e que também se move do que é secular para o sagrado, penso que a meditação é justamente a ferramenta que permite que nos tornemos mais despertos para o dia a dia.

Será que podemos nos tornar mais despertos ? Gostaria de tratar dessa questão não em termos de conhecimento, mas em relação à espiritualidade.  Como vivo a minha vida ? O que nos guia ?

Quando nos tornamos conscientes de todas as vozes que impulsionam nossa vida – os hormônios, os pais, a sociedade,etc.. –  ficamos um pouco mais livre delas. Despertos, podemos ir colocando essas vozes gradualmente mais distantes. E daí a pergunta : o que nos guiará se não houver nenhum impulso que vem de fora ou de dentro de nós ? A possibilidade de sermos livres existe quando conseguimos isso.

Estamos em um ponto critico no mundo. As fontes da vida moral, religiosa, estão diminuindo. A nova moralidade ainda é uma fonte fraca, e a meditação é uma importante atividade para encontrarmos novas fontes.

Rudolf Steiner disse que quando mergulharmos nas profundezas da meditação, poderemos encontrar tanto aquilo que leva ao florescimento interior do ser humano, quanto aquilo que leva à sua diminuição .

Como nos tornamos mais humanos ? Quais as práticas e os meios com que podemos contar para fortalecer essa nova dimensão ?

Gostaria de fazer uma distinção entre 3 sentimentos : pena, empatia e compaixão. A maioria de nós não gostaria de ser objeto de pena, porque isso é uma espécie de condescendência de cima para baixo. Empatia é um pouco melhor, a gente se sente no lugar do outro, mas isso também não é muito confortável. Pela empatia temos o fenômeno da exaustão por sentir o sentimento do outro. Os neurocientistas alemães vem estudando o fenômeno que expressa esse sofrimento. Já a compaixão é bem diferente, ela leva à ação, ou pelo menos ao impulso para diminuir o sofrimento porque existem outros circuitos no cérebro que são ativados, os sentimentos são positivos e dão a sensação da capacidade de ajudar.

Há que se distinguir entre o que é e o que não é compaixão. Ajudar os necessitados é uma capacidade tão bonita no ser humano. De onde ela vem ? Como se relaciona com o bem ? Tentar encontrar o que poderia ajudar o outro é genuinamente saudável, pois é necessário que o bem floresça não só na minha vida, mas na vida de todos. Isso significa mover-se na direção do sofrimento e não desviar dele.

São Francisco de Assis e Shantideva são muito parecidos nas suas orações, tanto no ocidente quanto na ásia , ambos falam de amor.

Quando R.Steiner fundou a primeira escola Waldorf, ele formulou a seguinte questão sobre educação : “ Como uma criança é educada para que se torne um ser humano verdadeiro , afim de que possa dar conta de toda a sua individualidade dentro de si, e ao mesmo tempo, expressar o seu inteiro ser na conduta ética e religiosa da vida ?

Não seria essa uma questão para a educação de qualquer criança em qualquer escola, e não só para a educação nas escolas Waldorf ?

Cada criança vem ao mundo com a inclinação para a generosidade, para a gentileza, e mesmo a ciência está começando a reconhecer que isso é um fato. Como é que nós adultos esquecemos isso ? Como podemos fortalecer essas capacidades ? Como fazemos isso em cada escola, em cada lugar do mundo ? O que vocês fariam ? Onde começariam ?

Steiner diz que quando ultrapassamos o limiar (da morte), a questão do bem e do mal desaparecem e o que se torna importante é aquilo que gera saúde. Na estória do Parsifal , temos a pergunta sanadora que quebra todas as convenções do bom comportamento.

No famoso discurso de Martin Luther King, também vemos este aspecto.

Necessitamos não apenas de nos comportarmos bem, mas de amarmos uns aos outros, temos que ir na direção do sofrimento mesmo quebrando as convenções e regras, temos que fazer isso a partir da compaixão e do amor pelos outros.

Quando estamos no ponto de completa liberdade, o que nos orienta em direção ao bem ? Talvez a atitude que Parsifal tomou no final do seu caminho – desobedecer as regras e obedecer à sua própria compaixão.

Como podemos ampliar esta atitude do Parsifal ? Em primeiro lugar a pessoas muito ligadas a nós, nossa família, e aos poucos estender isso um pouco além, na direção das pessoas não tão intimas, e depois a uma pessoa completamente estranha, talvez para alguém que cruzamos na rua e com quem poderíamos exercitar interiormente a pergunta : O que o faz sofrer, como posso ajudá-lo ?

O que aconteceria se mais pessoas se colocassem essas perguntas ?  O que aconteceria no mundo, uns com os outros, se todos carregássemos essas perguntas de amor e compaixão em nós ?

Essa atividade , que é meditativa, gera saúde e florescimento dentro de nós.

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Palestra proferida por Arthur Zajonc no II Fórum de Meditação realizado na Sociedade Antroposofica em 31 de agosto de 2013.

Published in: on 06/09/2013 at 7:30 p09  Deixe um comentário