A Cobiça e o Consumismo

Capítulo III 

A inflação é algo muito real. Colocado em termos simples, isto se reduz     ao fato de haver mais dinheiro em circulação do que os bens existentes.     O valor total do dinheiro em circulação é maior do que o dos bens oferecidos e o dinheiro então provoca uma demanda por mais bens do que os realmente existentes. Se a procura supera a oferta então, na estrutura  da nossa economia de mercado, os preços sobem ou( o que dá no mesmo) o dinheiro perde o valor.

Isto tem toda uma série de conseqüências. Uma maneira eficaz de manter os preços baixos e ainda atingir um faturamento razoável é aumentar a produção e economizar nos trabalhadores de salários altos. Pois com a elevação dos preços os salários também sobem. Ambas as medidas levam à automação. E isto significa investimentos em larga escala, que novamente necessitam de alto faturamento para conseguir o necessário retorno do capital investido. Além do mais, a automação reduz o número de empregos, assim injeções de grandes quantias de dinheiro são necessárias para criar mais empregos. Então todas estas indústrias em crescimento, aumentando seus lucros para amortizar os altos investimentos através do aumento da produção, são dependentes dos consumidores que compram bens. O impulso de compra precisa ser estimulado ao nível mais elevado possível através da propaganda convincente e tentadora.

Voltando ao consumidor que compra bens a prestação e assim usa o credito ao consumidor, o que ele está realmente fazendo ?

Economicamente ele piora a inflação. Compra algo por dinheiro que ele não tem mas espera ganhar no futuro. O dinheiro de compra realmente ainda tem que ser feito. Não há futuros bens, como no caso do produtor, equilibrando esta criação de dinheiro. Assim, de fato, o consumidor que usa crediário está contribuindo para a desvalorização do dinheiro. E quando ele diz “ Você pode usar a inflação –  assuma dívidas, elas tendem a crescer menos do que a inflação”, então o círculo está fechado. Em termos econômicos qualquer um que use o sistema de crediário ajuda a aumentar a inflação.

O que esta atitude significa psicologicamente ? Em síntese, o sistema de crediário significa que os credores institucionalizam a uma economia baseada na cobiça, na satisfação de um anseio recorrente de comprar algo. Os bancos aderem genuinamente à propaganda. “ Você deseja gozar férias dispendiosas ; há uma chance de comprar um belíssimo relógio antigo; sua mulher inesperadamente necessita um segundo carro, e assim por diante”. Não tem problema. Vá ao banco, e no dia seguinte você pode gozar suas férias, ter seu relógio e sua mulher pode guiar o segundo carro.

E então ? Então vêm as prestações – por meses, por anos. Você se fez prisioneiro desta situação. E seus sentimentos a respeito dos objetos desejados permanecem os mesmos ? Ou  você está começando a desgostar daquele relógio, você está amaldiçoando o segundo carro, a lembrança das férias dispendiosas já feneceu ? De qualquer forma, você se encontra em débito e tem que aumentar seus rendimentos. Talvez seu sindicato possa fazer algo na próxima rodada de negociações. Neste ponto nós chegamos ao outro lado da inflação – aumentos salariais.

Outra conseqüência é a transformação do papel de consumidor no de produtor, pois aquele que passa, cada vez mais a justificar seu comportamento com os argumentos deste, isto é, ele considera o crédito como um investimento que pode ser amortizado através da geração de novas receitas. Pode compensar as férias mais caras escrevendo artigos a tanto por página ; o segundo carro permite que sua mulher trabalhe fora e ganhe mais dinheiro.E o velho relógio? Bem, certamente há limites para os tipos de artigos que podem se tornar meios de produção. Mas é fácil enganar a si mesmo e descobrir mais tarde que se está sob severa pressão. Os artigos das férias têm de ser escritos –  é uma pena se não forem aceitos. Ou suponho que minha esposa não consiga o emprego, ou o perde…mas agora ela já está a costumada a ter um segundo carro.

Apenas para tornar estes efeitos mais claros, vamos ver o oposto dos crediaristas : os poupadores ( gradualmente se tornando ultrapassados).

Todo mês separam uma quantia, assim talvez em dois anos possam gozar férias mais dispendiosas, ou uma pequena reserva para uma antiguidade ocasional ou porque eles percebem que seria realmente prático possuir outro carro.

Para a economia, isto significa que produzem poupança que outros podem usar como crédito para negócios. E um poupador moderno não se preocupará apenas em ter altos juros, mas se sentirá principalmente responsável por aquilo que acontecer através de seu dinheiro ; em outras palavras, o que o seu dinheiro torna possível. Ele pode optar por receber juros menores quando ele percebe que assim fazendo seu dinheiro não será absorvido pela indústria de armas ou de agrotóxicos, mas poderá ser usado por uma pequena fábrica de brinquedos educacionais ou para produção de pigmentos à base de vegetais ou talvez para lidar com alimentos biodinâmicos.

E mais, haverá ocasiões nas quais ele poderá informar o produtor do que ele pretende comprar, as necessidades que pretende satisfazer no futuro. Desta forma está ajudando a concretizar uma nova ordem econômica, com associação entre produtor e consumidor, ao invés de produção para um mercado desconhecido, anônimo, como nos países capitalistas, ou o sistema de planejamento estatal dos paises comunistas.

Finalmente, há um outro importante aspecto psicológico.

Durante o período da poupança, um desejo pode se tornar vontade.

Há tempo suficiente para tranqüilamente pensar se realmente quer aquele segundo carro, discutir as conseqüências com amigos.Nós de fato o queremos? Nós poderíamos estar nos preparando para uma viajem dispendiosa à África, ansiosamente aguardando e acertando detalhes. Talvez, no entanto, durante o período de poupança, ela se revele mais como um capricho passageiro do que um desejo real.

E assim quando o dinheiro é finalmente gasto, no que eu o gastei é realmente meu. Eu provei de fato o que queria, e agora posso usá-lo livremente. Não há coerção para pagar em dia, apenas talvez uma continuação voluntária do hábito de poupar. Nenhuma redação forçada de artigos para reaver as despesas das férias ; antes algo escrito livremente pode ser oferecido a uma revista.

O exemplo da inflação torna particularmente claro como os fenômenos sociais e o comportamento individual estão relacionados. Lá fora, nós vemos uma vida econômica que tem cada vez mais o caráter de uma máquina, acelerada através da inflação e alimentada pelo combustível da paixão consumista. Nós mostramos que comprar à prestação agrava a inflação e torna possível comprar qualquer coisa por impulso.

Consumidores não tem a mínima consciência de que, através de uma completa mudança de seus hábitos de consumo, eles poderiam contribuir para mudanças fundamentais na ordem econômica.

 

“A Sociedade como reflexo do próprio interior”

  Lex Bos –  cap. III

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Published in: on 28/08/2009 at 7:30 p08  Deixe um comentário  

Manipulação através da fraqueza interior

Capítulo II

Nossa primeira tentativa pode ser feita com cinzentos blocos de apartamentos residenciais.

Se caminharmos em volta de um destes, perguntaremos perplexos :     Como pôde tal lugar ter sido construído ? Que tipo de mente poderia ter projetado isto ? A questão é não se deixar levar por sentimentos vagos como esses, que sobretudo tocam algo negativo em outras pessoas. Podemos tentar ao invés, fazendo uma retrospectiva do dia, reduzir a experiência a uma figura, uma imagem. Talvez apareça um tipo de animal cinzento e anônimo, cuja principal característica é uma falta de imaginação.

Aí então eu viro e olho para dentro, e projeto uma luz sobre o meu próprio mundo pessoal.

E talvez, subitamente, comece a perceber que a maneira como eu passei meus fins de semana ou feriados, nos últimos anos, foi igualmente descolorida e sem imaginação. Uma tediosa série de blocos de fins de semana ! A mesma escada…lavar o carro no sábado…a mesma varanda…jogo de cartas à noite…o mesmo pequeno corredor…dormir até tarde…ir à igreja…a mesma sala de estar com a tv no mesmo canto…ver futebol na tv à tarde.

Quem é o arquiteto desses enfadonhos e cinzentos blocos de fins de semana ? Não poderia esta parte de minha própria natureza ter projetado estas monótonas moradias ? Se eu fosse tentar dar vida aos fins de semana, dar algum colorido e variedade à minha cinzenta insipidez interior, não libertaria eu uma parte do ser que se apossa de mim através daqueles blocos residenciais?

Outro exemplo : em 1974 a Anistia Internacional chamou a atenção do mundo para a tortura. Você ouve os relatos e lê o que as testemunhas contam com um sentimento de repugnância total. Como é possível um homem fazer isto ao outro ? Nós tendemos a dar as costas ou ficar revoltados. Entretanto, também é razoável refletirmos sobre a questão e perguntarnos : o que realmente está acontecendo ? Certamente o fenômeno da tortura pode ser caracterizado de muitas maneiras diferentes, mas um determinado aspecto está sempre presente: uma pessoa está usando outra como uma coisa, uma ferramenta, um meio para um fim. Seu próprio fim. O objetivo é sempre sagrado ! A segurança nacional, o sucesso da revolução, vencer a guerra, erradicar um mal e assim por diante. Em vista do objetivo, quaisquer meios são válidos para obter informações ou, por outro lado, para garantir o silêncio.

Uma vez que eu tenha encontrado esta chave – o uso mecânico de outra pessoa – eu posso usá-la para olhar para dentro do meu próprio modo de vida.

Não há, às vezes, portas no meu comportamento – pequenas mas do mesmo tipo – nas quais esta chave serviria ? Parece realmente haver algumas. Saindo do posto de gasolina por exemplo, eu me flagro de ter tratado o empregado exatamente como uma ferramenta. Eu não olhei para ele. Eu só lhe entreguei a chave automaticamente e até lhe dei o dinheiro sem pensar. Eu não tenho mais a menos idéia de como ele era, o que disse ou o que fez. Em resumo, para mim ele foi simplesmente uma extensão da bomba de gasolina.

Eu não tenho que me sentir indevidamente culpado sobre isto, porque com certeza eu estava a caminho de uma importante reunião e além do mais, arredondei a quantia bem liberalmente.

E onde se vai parar, se você tiver de olhar cada atendente de posto, moça de café, carteiro ou quem quer que seja, profundamente em seus olhos azuis para que se recorde à noite de como eles eram ?

Ou será que, se milhões de pessoas se tratam mecanicamente desta maneira inocente, não se formará uma base para que centenas de milhares o façam de forma um pouco menos inocente – influenciando o consumidor por exemplo .

E assim novamente dando condições a milhares de fazer uso de outros para seus próprios fins, através de meios realmente dúbios ? Finalmente, talvez seja possível para centenas pressionar outras pessoas de forma bastante brutal. Uma espécie de pirâmide é construída com a mesma substância imoral. Embaixo, muitos, numa solução diluída : em cima, uns poucos, mas concentrados. Desta maneira nos deparamos com o torturador dentro de nós.

Não é nenhum demérito para a importância do trabalho da Anistia perguntar : não poderíamos, vencendo este torturador potencial em nós mesmos, contribuir com algo para a superação do problema ?

Como um exemplo adicional, a maioria de nós sabe que milhões de cópias dos jornais sensacionalistas apresentam todo dia histórias de estupro e assassinato, escândalos sexuais, fraude, estelionato em larga escala, raptos forjados e assim por diante. Tais notícias são alimento para um tipo particular de sentimento e emoção. No momento em que sai o jornal desta manhã, há muito já foi consumido o alimento de ontem. Ficou um vazio e a alma está faminta por uma nova injeção. É como o dragão do conto de fadas, ao qual todo ano deve ser oferecida uma jovem donzela, caso contrário irromperá e destruirá toda a vizinhança. Todo dia o dragão amante de sensações dentro de nós exige cada vez mais alimento, cada vez mais freqüentemente.

Mas oi que significa isto ? É sem importância para o mundo à nossa volta ? São reais somente as ações ? E os sentimentos e pensamentos realmente não tem nenhum efeito ? Se milhões de pequenos dragões famintos estão todos clamando por uma jovem donzela, não haverá uma realmente obrigada a ser devorada ? Quando tantas pessoas estão ansiosamente aguardando o próximo assassinato – com “sincera” indignação moral – será que o desejo não criará um campo magnético potencial para atrair exatamente tal ação ? Muitos de nós pensarão que podemos resistir a um impulso deste tipo, mas a corrente da humanidade possui elos fracos. Haverá pessoas que por qualquer causa ( hereditariedade, impulso, destino ) estão predispostas a tal ação. Devemos então nos surpreender se eles sucumbem a uma pressão maciça que realmente exige isso deles ? Precisa haver material para a edição de amanhã. Nós podemos culpar o assassino ou o dono, mas nós mesmos não começamos isto e distribuímos o exemplar ?

Um exemplo final diz respeito ao poder. O tema do poder permeia toda discussão política e, cada vez mais, as análises da ciência social. Concentrações de poder se tornam mais e mais comuns. Toda fusão, todo aumento de tamanho toda ampliação da esfera de influência coloca poder nas mãos de grupos cada vez menores. Este é um processo perturbador. Como pode tanto poder estar concentrado em tão poucas mãos ?

Este sentimento nos leva a considerar no que implica realmente o poder. São os homens “de cima” tão poderosos de fato ? Ou há naquele nível a mais aguda forma de pressão, sujeição a um sistema e, em suma, de impotência ?

Eu sei que tal abordagem horroriza aqueles críticos da sociedade que querem todo poder solapado. Mas deveríamos tomar seriamente o que foi dito por um presidente e diretor da multinacional Shell. Indagado sobre como se sentia estando no topo de uma empresa tão influente,replicou:“ É como estar sentado nas costas de um enorme brontossauro e observar aonde ele está indo” !

Há um sinal mais convincente de impotência ? E novamente, onde encontramos isto em nós mesmos ?

Com esta pista de impotência, vamos dirigir a luz para dentro. Quão fortes somos em guiar nossas forças anímicas do pensar, sentir e querer ?

A melhor resposta reside num teste. Pegue um lápis – real ou imaginário – e decida pensar por cinco minutos em nada mais além do lápis. Uma seqüência clara e controlada de pensamentos que permaneçam relacionados com o lápis.

Descreva por exemplo, a forma, a cor, o que ele faz, os materiais e como é produzido. Depois disto, há diferentes tipos de lápis, a história do lápis, a derivação da palavra e assim por diante.

Qualquer um fazendo este exercício percebe quão pouco ele é senhor em sua própria morada do pensar. A cadeia de pensamentos é interrompida ou se quebra, as associações carregam você. Você se apanha pensando, não no lápis, mas no artigo que você quer escrever com ele, ou na caneta tinteiro que você ainda não mandou consertar…É uma sensação maravilhosa ser bem sucedido mesmo por dois minutos em manter total controle sobre a sua própria corrente de pensamentos. E se isto não acontece, você se envergonha de sua fraqueza…

Como é com o sentir ? Nós governamos nossos sentimentos ou eles nos governam ? Nós não podemos fazer aqui o que fizemos com os pensamentos, mas podemos nos observar em situações nas quais os sentimentos afloram. Nos conflitos, nos contratempos ou simplesmente se eu tiver um sucesso após o outro ; encontrando pessoas por quem eu tenho uma forte antipatia, ou aquelas que me agradam; em casos onde as pessoas ridicularizam coisas que para mim são sagradas, ou enfaticamente defendem algo no qual não vejo sentido algum. O que acontece com os meus sentimentos em tais momentos ? Será que eles, por um lado me reduzem ao desespero, profunda contrariedade ou dúvida paralisante ; ou por outro lado me levam à rebeldia, caloroso entusiasmo ou cega confiança ? Ou posso eu, sem me tornar indiferente, controlar os extremos e deixar meus sentimentos se tornarem um órgão sensitivo de percepção, possibiliatndo-me penetrar mais profundamente na realidade daquilo que me rodeia ? Nós podemos descobrir que não é fácil ser senhor em nossa própria morada emocional. Muito freqüentemente sentimentos ou emoções me arrasam. E então, eu tenho novamente o mesmo sentimento de impotência. (Mas, cuide-se para não ser levado a desistir dos exercícios pelo desespero !)

Finalmente, o querer. Se eu resolvo fazer uma ação, eu a executo ? Consigo, por assim dizer, mandar para baixo pensamentos definidos, de modo que através dos meus membros eles se tornem ação ? Para fazer isto como um exercício, devo escolher uma ação que nada do mundo exterior possa me impedir de executá-la. Porque isto torna muito fácil transferir a culpa para fatores externos. Não, eu devo escolher algo que ninguém possa me impedir de realizar. Por exemplo, ao levantar de manhã, decido que ás onze ou às três horas, mudarei meu lenço de um bolso para outro. Decididamente uma proposta bastante simples. Mas notar, dia após dia, como é difícil, quão pouco capaz se é de realizar precisamente tais atos simples, é vivenciar uma terceira esfera de fraqueza e nenhum senhor na morada do querer.

Estes exercícios são tomados do livro “ O conhecimento dos Mundos Superiores”, de Rudolf Steiner. Eles são três dentre os seis exercícios básicos que qualquer um trilhando um caminho interior de desenvolvimento precisa fazer continuamente, junto com outros exercícios de percepção, meditação e assim por diante.

Voltando ao fenômeno social do poder : vimos pessoas apanhadas de forma irremediável num sistema anônimo. Então, a que conduz o fato de encontrarmos em nós mesmos três fontes que são fundamentalmente fracas – onde nós não governamos nossa própria morada do pensar, sentir e querer ?

Se incontáveis pessoas têm esta fraqueza interior, não estarão elas criando um vácuo dentro da sociedade, propício para um sistema de poder se alojar e pensar por nós, brincar com nossos sentimentos e fazer uso da nossa vontade ?

Perceber tais centros de poder fora de nos deveria mover-nos a tentar elaborar uma saída para nossa própria impotência interior.

Nós agora vimos como fenômenos sociais estão ligados com nossos processos psíquicos e tentamos com os exemplos tirados das construções modernas, imprensa marrom, o uso da tortura e o mau uso do poder, mostrar como uma qualidade exterior pode ser encontrada dentro de nós. E vimos que com o seu reconhecimento, surge a possibilidade de transformá-la e assim contribuir com algo medicinal para sua existência social.

Nós agora continuaremos, partindo do mesmo ponto de vista da contemplação do fenômeno humano, considerando os fenômenos da inflação e crediário, seguros e investimentos, impostos e a indústria bélica.

                                                                   Em

 “A Sociedade como reflexo do próprio interior”

  Lex Bos – capítulo II

Published in: on 20/08/2009 at 7:30 p08  Deixe um comentário  

O Caminho para fora e o Caminho para dentro

 

                                                                                                                        Capítulo I 

Por volta de 1968, ondas de entusiasmo revolucionário varreram os campus de Berkeley, Tóquio, Berlin, Amsterdam, Paris, Londres e Sussex, à medida que estudantes politicamente orientados atacavam os bastiões de um sistema educacional reacionário. O resultado ? Embora muitas universidades tornassem a economia política marxista parte do currículo e contratassem mais conferencistas marxistas, as tentativas para ativar uma participação estudantil concreta logo enfraqueceram. No início da década de 70 a energia tinha desaparecido.

No rastro da revolução vieram os seminários de sensibilização e os grupos de encontro, centros para treinamento em gestalt, yoga, meditação transcendental, bioenergética e assim por diante. Eles começam de modo razoavelmente inocente apresentando formas de relaxamento e auto-expressão para libertar os sentimentos profundos e forças não conscientes que existem em cada um. Depois, vêm exercícios simples, posturas especiais e semelhantes. Seguem-se “ viagens de fim de semana para outros mundos” comercializadas, proporcionando descobertas breves, porém violentamente perturbadoras através do vácuo que separa o mundo perceptível pelos sentidos do mundo não sensorial.

Os rebeldes de 1968 também cruzaram um limiar e vivenciaram uma entrada em outro mundo. Quando os estudantes de cabelo comprido e blue jeans invadiram as reitorias, eles viram paredes com retratos dos fundadores e presidentes do século XVII em diante e mesas de feltro verde com o martelo de marfim pronto para a próxima reunião . Ou trabalhadores de macacão tomaram a sala da diretoria de sua fábrica e encontraram poltronas para clientes importantes, um cofre para documentos secretos , uma ante-sala onde uma secretária senta protegendo seu empregador. Ou os ativistas perturbando os conselhos municipais de modo bem pouco usual. Alguns políticos tchecos tiveram a coragem de não aplaudir o discurso presidencial no congresso de seu partido …Todas essas pessoas encontraram-se face a face com uma realidade diferente da sua própria, e penetraram num mundo ao qual não pertenciam.

As experiências dos extrovertidos dos últimos anos da década de 60 são notavelmente similares àquelas dos introvertidos do início da década de 70.

Ambos os grupos cruzaram um limiar pela violência e se encontraram despreparados, expostos às poderosas energias de uma realidade oculta.

Um grupo, através da agitação e das provocação deparou-se com a fria e opressiva engrenagem de um sistema de poder, o outro, numa rápida viagem, encontrou as tentações de um mundo de ilusão.

Conversar com os membros de qualquer um dos grupos dá a impressão de que algo deu errado, de que ao retornar, eles estavam não só desiludidos, mas desorientados em si mesmos.

Havia dois extremos, um bem exterior, o outro interior, e nenhuma relação entre eles ! Um era de fato uma reação ao outro, mas nas esferas encontradas não foram percebidas como conectadas. Será que uma passagem forçada, despreparada, pode apenas conduzir a uma caricatura de realidade espiritual ?

Quando esses anos são revistos, a questão ainda surge : “ Não estão os campos de energia fora de mim relacionados de algum modo com o meu mundo interior, e minhas forças interiores à realidade social externa ?”

Se aquelas energias são realmente semelhantes, e surgem da mesma fonte, não poderíamos utilizar o processo de desenvolvimento da consciência individual para descobrir algo sobre a situação social, e deixar o processo de desenvolvimento da percepção do social nos guiar em direção à compreensão interior de nós mesmos ?

Muitas pessoas consideram estranha a idéia de que os homens façam parte de uma realidade espiritual que podem vivenciar a partir de dois lados : da realidade social externa e o da alma interior. Nós ainda vivemos sob a influência de Kant que “provou de uma vez por todas” que há fronteiras para o conhecimento humano e que aquilo que está além destes limites só pode ser uma questão de fé. Esta é uma ruptura há muito preparada na história, através do nosso processo gradual de nos tornarmos indivíduos. A separação significa que pouco a pouco, de uma vida onírica num mundo de espírito divino, os homens acordam para o mundo dos sentidos.

Foi Francis Bacon ( 1561-1626), o fundador da ciência natural moderna, quem sistematicamente estabeleceu esta ruptura. Ele tinha uma profunda desconfiança da percepção humana, dizendo que as percepções sempre estão misturadas com sentimentos religiosos, místicos e alquímicos. As percepções humanas são subjetivas, e temos de substituí-las, tanto quanto possível, por instrumentos de registro que possam medir, pesar e contar.

Ele tampouco confiava no pensar, afirmando que os pensamentos estão misturados com dogmas clericais, preconceitos acadêmicos e revelações não comprovadas, e também são subjetivos.

O pensar humano só pode ser empregado desde que os resultados possam ser expressos em fórmulas matemáticas ( Novum Organum, 1, 41-44 ).

Quando o homem, como ser pensante e sensível, foi excluído de conhecimento, o resultado só pode ser uma ciência na qual ele não podia mais redescobrir a si mesmo. Quando foi desconsiderado como conhecedor, a ciência em desenvolvimento não podia dar espaço para ele.

Atualmente vemos isso cada vez mais nos debates, por exemplo, sobre o meio ambiente, aborto, eutanásia.

A ciência deixou o homem desolado, sem respostas para suas perguntas fundamentais sobre a natureza e seu próprio ser.

Esta ciência alienada posteriormente abriu caminho para avanços mecânicos, químicos, elétricos ; e também nos campos da psicologia e sociologia. É com tal tecnologia que construímos a realidade social em torno de nós.

É de admirar-se que uma ciência que rejeita o homem leva a uma sociedade sem face humana ?

É surpreendente que uma ciência que cria uma ruptura entre o homem e ele mesmo resulte numa sociedade onde ele é vivenciado como um ser dividido ?

Há dois abismos, dois limiares, dois mundos estranhos.

O que fazermos a respeito ? Se forçarmos a entrada em qualquer um deles, poderemos nos machucar e ficarmos com seqüelas, encontrando no limiar apenas uma caricatura do “Eu”, marcada pelo mal em sua fria forma enrijecedora ou sua calorosa teia de ilusão.

Como podemos abordar estes limiares ?

É possível fazer de um a ponte para o outro por meio de um ritmo saudável, tanto na nossa consciência individual quanto na nossa consciência social ?

Podemos olhar alternadamente para dentro com questões tiradas do mundo exterior, e para fora com um questionamento interior da nossa própria responsabilidade por nossa situação ?

Em

“A Sociedade como reflexo do próprio interior”

Lex Bos – cap I

Published in: on 14/08/2009 at 7:30 p08  Deixe um comentário  

A Religião do Cérebro

 

O neurocirurgião Raul Marino Jr., 68 anos, conhece o cérebro humano como poucos. Em 35 anos de carreira, estudou-o, analisou as mudanças de comportamento relacionadas à sua química e se preocupou em explicar os caminhos das emoções entre os 100 bilhões de neurônios do órgão. Trabalhou em alguns dos melhores centros de pesquisa, como o Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos. Estudou para entender o que acontece no cérebro durante as orações, transes e outras práticas místicas. Marino, professor de neurocirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, lançou o livro A religião do cérebro (Ed. Gente), no qual resume as descobertas mais recentes sobre a origem e os efeitos da experiência religiosa ou mística. “Fiz um depoimento sobre o que existe e acredito, como, por exemplo, o fato de que somos dotados de áreas cerebrais para que possamos nos comunicar com Deus”, disse Marino – além de médico, cristão –, na entrevista concedida a ISTOÉ.

ISTOÉ – Qual a concepção mais atual sobre o funcionamento do cérebro?
Raul Marino Jr. – Um dos princípios da neurociência do comportamento é que nossas experiências são geradas pela atividade cerebral. Assim, os sentimentos de amor, a consciência e até a presença de uma divindade estão associados a eventos que acontecem no cérebro.

ISTOÉ – E o que é a neuroteologia?
Marino Jr. – Estudamos o processamento das emoções relacionadas à religião, à espiritualidade, no cérebro.

ISTOÉ – Como são feitos os estudos?
Marino Jr. – Foram feitas experiências com monges e freiras em clausura mostrando como e quando áreas cerebrais se alteravam durante a meditação e a oração. Viu-se que, em estado meditativo, eles apresentam alterações reais e detectáveis. Há mudanças na química do sangue e das ondas cerebrais.

ISTOÉ – Qual foi, até agora, o maior achado da neuroteologia?
Marino Jr. – Foi ter encontrado, no cérebro, as áreas ativadas pela oração e pela meditação, quando entramos em contato com o divino.

ISTOÉ – E quais são essas regiões?
Marino Jr. – Uma das mais importantes é o lobo límbico e suas conexões.
Lá estão estruturas que nos ligam ao Criador e ao significado do mundo.

ISTOÉ – Seu livro descreve experiências de estimulação de áreas do cérebro situadas no lobo temporal direito, seguidas de reações que podem ser interpretadas como experiências místicas. Pode explicar isso?
Marino Jr. – Durante os últimos 15 anos, um importante pesquisador, Michael Persinger, aplicou campos magnéticos sobre o hemisfério direito do cérebro de jornalistas, músicos, escritores e estudantes. Todos referiram-se à sensação de uma presença ou ao deslocamento para fora dos seus corpos. Uma das conclusões foi a de que crenças sobre a existência de deuses são propriedades normais do cérebro humano, tendo se desenvolvido em nossa espécie como funções para facilitar nossa adaptabilidade. O autor mostrou a evidência de que certas experiências de cunho religioso podem ser simuladas em laboratório. Isso não quer dizer, porém, que elas sejam fruto do cérebro. A experiência mística é algo que vem de dentro. E só o ser humano pode ter essa experiência divina. Só ele possui as estruturas cerebrais capazes de processá-la.

ISTOÉ – De que maneira os conhecimentos da neuroteologia podem melhorar
o atendimento ao paciente?
Marino Jr. – Pode-se usá-los em favor do doente. É como ajudá-lo a usar uma fonte de benefícios que ele tem em si próprio, mas que muitos desconhecem.

ISTOÉ – Quais são esses benefícios?
Marino Jr. – A vivência da espiritualidade ajuda no bom funcionamento do organismo. As pessoas que têm fé se recuperam melhor de tratamentos de doenças crônicas, por exemplo.

ISTOÉ – No livro, o sr. afirma que a intuição é uma ferramenta que desprezamos cada vez mais. Como usá-la melhor?
Marino Jr. –
Uma das maneiras é aprender a fazer silêncio para ouvir a sua voz.
Ela não é alta e clara, dizendo faça isso ou aquilo. É um sopro, um sentimento, uma certeza. Isso depende de prática, de meditação, oração ou como você quiser chamar esses momentos em que a pessoa se desliga da corrente dos acontecimentos e entra em contato consigo e com Deus.

Cilene Pereira e Monica Tarantino

Revista Isto É / agosto 2005

Published in: on 07/08/2009 at 7:30 p08  Deixe um comentário