Quando alguém quer sair do dia a dia, fazer esforço para sair do passado, de repente nota todos os egoísmos : o filho, o trabalho, a situação financeira. Sente-se como um peso nas costas ter de romper com isto que, na verdade, é algo interno. O Eu que vive dentro de nós se defronta com as 3 faculdades : pensar, sentir, querer. Essas 3 qualidades foram se desenvolvendo aos poucos, gradativamente.
A humanidade acordou aos poucos. Na época egípcia, os corpos eram mais broncos, os laços de casamento eram consangüíneos . As pirâmides eram uma forma de por ordem nas coisas. O faraó era também um sacerdote. No caminho do despertar da consciência, na época grega, observamos um início de desenvolvimento para o belo – começam as grandes estátuas, o drama e as comédias gregas. É a “alma do sentimento”. Nos romanos, a visão clara, a velha hierarquia egípcia reordenada. Surge, ao lado da alma do sentimento, a “alma da razão”. O direito romano que diz o que é certo e o que é errado, as idéias de justiça.
O que está surgindo hoje ? Assistimos ao ressurgimento do que pipocou nas épocas antiga, média,e moderna. Na virada do século temos o Parsival e suas perguntas, além dos cavaleiros da idade média e suas virtudes : a devoção à uma dama e com esta qualidade, desenvolviam a força do sacrifício. A perseverança , que os fazia andar anos e anos atrás de dragões, que desenvolvia a lealdade, a fidelidade apesar das tentações. A força da compaixão pela defesa do pobre e do fraco, imbuir-se da dor do outro e poder desprender de si próprio. A gentileza, os bons tratos, a sensibilidade para o que existe no outro.
Outro exercício dessa época da cavalaria era a paciência e, no desenvolvimento desta, poder aprender o esperar – o segredo de, com paciência, chegar ao segredo. O controle da língua. A coragem enquanto necessária para desenvolver a força para libertar. A discrição que desenvolve a força para meditar. A generosidade, tida como uma das qualidades a conquistar, fonte de desenvolvimento para a capacidade de amar. As pessoas morriam pelo que achavam certo, como Giordano Bruno. Isso hoje assume outras formas. Depois, com Bacon e Kant, o positivismo no caminho do despertar da consciência, onde se colocava tudo de lado, tudo o que não podia ser mensurado.
O desafio que enfrentamos na nossa época é o discernimento do que é bom ou não, é o desenvolvimento da consciência moral. E a partir disso, olharmos para a maneira como lidamos com a família, a natureza, o social. Dentro da evolução iremos focar as questões do nosso tempo. Como já foi dito, no processo evolutivo da humanidade há um despertar da consciência. Como encontrar um caminho emancipado, de liberdade, no encontro com outras pessoas que estão neste mesmo caminho em um processo social ?
O processo evolutivo da humanidade conduz à emancipação da vida social, acarretando a questão social. O êxodo, como a imagem do espiritual guiando o povo humano – 40 anos no deserto, o mar vermelho se abrindo à passagem, o maná caindo do céu. No Bagavah Guitah também observamos os seres espirituais guiando a Terra. Ainda com o povo hebreu, a tábua das leis de Moisés. O Egito é caracterizado pela pirâmide que é a própria imagem do povo : o faraó está no topo dela e é aquele que faz a ponte entre o mundo espiritual e o homem.
Na passagem da cultura egípcia para a grega, observamos diferenças. É um período de grandes pensadores, onde vemos a emancipação do mundo espiritual. O ser humano, através da atividade do pensar, começa a formar conceitos. Ele começa a formular o oculto atrás de sua existência. Em Roma, no senado, é onde vemos o sinal mais concreto da emancipação da vida social e jurídica do mundo espiritual. É a primeira vez que o próprio ser humano consegue discutir as leis que vão reger a vida e a consciência humana em sociedade. Mas a vida econômica continuava ainda na mão dos governantes – imagem dos tributos a César. É só na idade média, nos burgos, que se percebe o início da emancipação da vida econômica.
A realidade hoje se aproxima mais da imagem de 3 esferas entrelaçadas, não ordenadas por hierarquia, mas cada uma com um espaço autônomo entrelaçada entre as demais. Essas 3 esferas começam a se relacionar mais em termos de igualdade, e os seres humanos participam mais. Chegamos a um ponto de poder afirmar que,o que acontece a nível social é de responsabilidade do ser humano. A vida social reflete o que vive no interior do homem. A imagem do homem como expressão de dois mundos é com a cabeça no céu e os pés na terra, vida espiritual acima, vida terrestre abaixo e, no meio,a alma. O elemento humano mesmo está traduzido na alma. Não temos uma percepção direta do Eu, da essência espiritual, que só podemos perceber pelas suas manifestações.
No nível da existência física, o ser humano traduz o aspecto das necessidades, e no nível da existência espiritual, um ser dotado de capacidades. No âmbito físico, o ser humano é anti-social ; o espaço que o corpo ocupa, o ar que respira, o alimento que ingere, só pode ser para um. E no âmbito espiritual, um ser associal ; na leitura de um livro, ele se isola. A vida espiritual se retrai de fora para que o ser humano possa agir e, ao mesmo tempo, se dá no interior dele. Eu preciso dessa associabilidade para o meu desenvolvimento espiritual , para cair em mim, encontrar meu Eu, por ordem no tumulto da minha alma. Preciso do anti-social para o meu sustento, proteção e segurança : alimentos, vestimenta, residência, afim de salvaguardar a minha identidade. E essas forças atuando na alma de muitos homens, geram isto que está aí fora.
O que o outro precisa para seu sustento ? O que eu tenho que ele precisa ? O que falta ao outro ? Aonde aquilo que é dele está comigo ? Daí vem a idéia do que é a Pedagogia Social. Ela é uma educação de grupos sociais, dentro dos quais o indivíduo pode amadurecer. É também a educação de indivíduos para se tornarem seres sociais. Quanto mais o indivíduo se torna consciente, mais as suas forças sociais decrescem. Os seres humanos estão constantemente em estado de vir a ser, e temos condições de fazer algumas coisas. Como indivíduos, estamos sempre na conquista da liberdade. E disto resulta que, o caminho da liberdade física, emocional, espiritual, implica na responsabilidade pelos erros que são inerentes.
A realidade social é antes uma realidade espiritual. Do campo espiritual, das idéias é que surge a situação social. Posso dar a forma à minha realidade social a partir do meu Eu. Daí a busca para o preenchimento da alma com conteúdos espirituais, com vivências, com acervo da experiência, com consciência. Acordados. O grande desafio é começarmos a buscar a liberdade nos campos espiritual, emocional, e físico . E também, na medida em que se comece a movimentar socialmente livre das simpatias e antipatias. Que no encontro se tenha a disposição de se relacionar com o outro como ele é.
Quando se entra na liberdade, entra-se no campo da livre iniciativa, e para entrar na livre iniciativa, tem-se que ter a consciência dos próprios motivos. Desenvolvimento social tem lugar onde seres humanos, por livre iniciativa pessoal, tomam a decisão de superar gradativamente a sua falta de liberdade interna e a sua falta de liberdade externa. Outro espaço de liberdade,é o uso que, por livre iniciativa, faço do meu tempo. Por isso, a necessidade da criação de momentos de introspecção, de se ver. A força que me tira de mim e me leva ao outro é a percepção, ela é a ponte entre mim e o próximo. Através dela, crio um espaço interno, uma abertura dentro de mim para olhar o outro.
Uma percepção “desinteressada”, sem preconceitos, promove o encontro real. Se não abro espaço para que o outro me signifique alguma coisa, não vou conhecê-lo. A corruptela disso pode levar, por um lado, ao consumismo, e por outro, à uma aproximação por interesse próprio, para obter vantagens para si. O reconhecimento do outro abre um espaço em mim que gera o afeto, e aí tenho a semente do amor. Sentir o outro na luta em busca de si próprio, é uma fonte do amor. Nós estamos no começo do que o Eu pode oferecer ao ser humano. Para poder ser social em liberdade, como indivíduos, o Eu deve se expressar. Quais as qualidades que o Eu pode trazer para a alma humana ?
Nesse caminho de reconhecimento do outro e do amor existem dois perigos : por um lado, reconhecer o outro como um dos meus, por exemplo, um gueto ; por outro lado, reconhecer o outro se ele trouxer proveito à mim pelo papel, e não por ele como Ser – o utilitarismo. Quando me relaciono com uma pessoa, assumo uma responsabilidade. E isso vem de uma consciência moral. A responsabilidade também pode escorregar para uma forma de poder onde ela perde o caráter de colocar-se a serviço de auxiliar, tirando a independência do outro e o tornando irresponsável – o paternalismo. Por outro lado, a leviandade , quando se assume o que não se sabe, não se pode – ingenuidade. Essas três forças, de percepção, de reconhecimento, de responsabilidade, são forças centrífugas.
Herwig Hättinger
( coordenação geral / julho 1991 / primeira parte )